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Nos dias entre a morte do papa Francisco e a eleição do novo líder da Igreja Católica, papa Leão 14, uma freira brasileira viveu um dos episódios mais controversos da história recente do Vaticano. Aline Pereira Ghammachi, natural do Amapá e ex-madre-abadessa do Mosteiro San Giacomo di Veglia, na Itália, foi destituída de seu cargo após denúncias anônimas que a acusavam de maus-tratos e manipulação dentro da comunidade religiosa. A brasileira, que assumiu o comando do mosteiro em 2018 aos 33 anos — tornando-se a abadessa mais jovem do país —, agora luta por justiça e afirma que o processo foi marcado por machismo, preconceito e ausência de defesa. Aline acredita que sua aparência física foi usada contra ela e que sua saída foi conduzida de forma arbitrária.
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A freira ocupava um dos cargos mais altos dentro da comunidade cisterciense, liderando cerca de 20 religiosas em uma rotina que unia fé, acolhimento e trabalho social. Sob sua liderança, o mosteiro se abriu à comunidade local, oferecendo apoio a mulheres vítimas de violência, promovendo inclusão social com uma horta voltada a pessoas com autismo e até produzindo uvas para elaboração de prosecco. No entanto, há dois anos, uma carta anônima enviada ao então papa Francisco mudou os rumos de sua trajetória. O documento apontava condutas abusivas por parte de Aline e sugeria que ela escondia informações financeiras do mosteiro. Apesar de uma primeira auditoria em 2023 recomendar o arquivamento do caso, o processo foi reaberto posteriormente — o que, segundo Aline, teria sido motivado por frei Mauro Giuseppe Lepori, seu superior hierárquico. “Ele dizia que eu era bonita demais para ser abadessa, ou mesmo para ser freira. Falava em tom de piada, rindo, mas me expôs ao ridículo.”
Em 2024, o Vaticano enviou uma nova visitadora apostólica ao mosteiro. Segundo Aline, a enviada do Vaticano não realizou nenhum exame psicológico ou entrevistas detalhadas, limitando-se a uma breve conversa antes de classificá-la como desequilibrada. A decisão de retirá-la do cargo veio quase um ano depois, em um momento delicado para a Igreja: no mesmo dia da morte do papa Francisco. Aline conta que a substituta, de 81 anos, chegou afirmando que estava ali em nome do papa recém-falecido — impedindo qualquer possibilidade de recurso imediato. A partir daí, a situação no mosteiro se deteriorou rapidamente. Aline foi informada de que precisaria sair e se submeter a um processo de “amadurecimento psicológico” em outra comunidade, algo que ela recusou por não ter sido julgada nem formalmente acusada. No dia 28 de abril, ela deixou o mosteiro. No dia seguinte, cinco freiras também partiram e buscaram a delegacia local, afirmando não suportar o clima instalado no convento após a intervenção do Vaticano.
Desde então, a comunidade religiosa está reduzida à metade. Das 22 mulheres que viviam no local, 11 saíram após a saída de Aline. Segundo a freira, ficaram apenas as irmãs mais idosas, muitas delas com mais de 85 anos. Uma das freiras que deixaram o convento, Maria Paola Dal Zotto, saiu em defesa da brasileira em entrevista ao jornal Gazzettino: “Foi inaugurado um tratamento medieval, um clima de calúnias e acusações infundadas contra a irmã Aline que, por sua vez, é uma pessoa muito séria e escrupulosa e que nos últimos anos se tornou o ponto de referência para a comunidade”. A Igreja Católica, até o momento, não se manifestou oficialmente sobre o caso. No entanto, o próprio frei Mauro Giuseppe Lepori afirmou: “A ex-abadessa está se libertando, acreditando que pode recuperar o poder e a vaidade por meio de mentiras e manipulação da mídia”.
Enquanto a Igreja silencia, a história de irmã Aline desperta interesse global. A imprensa italiana repercute amplamente o caso, com reportagens em veículos como a RAI e o Corriere del Veneto, que revelaram, inclusive, o interesse de uma produtora alemã em transformar a trajetória da freira em filme. A reportagem da RAI, intitulada “Freira em fuga: bela demais para ser abadessa?”, expôs como a aparência da brasileira teria influenciado sua destituição. Aline reconhece que sua origem, idade e feições podem ter pesado contra ela. “Aí mostra a questão sexista, machista. Porque uma pessoa jovem e bonita deve ser burra. Não pode ser inteligente, tem que ficar calada.” Desde que deixou o mosteiro, a religiosa tem se abrigado na casa da irmã em Milão e, durante o conclave, foi pessoalmente ao Vaticano em busca de justiça. Hoje, Aline Ghammachi tenta reverter a decisão junto ao Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, uma das mais altas cortes do Vaticano. Ela afirma que não recebeu explicações formais sobre os motivos de sua retirada e que jamais teve a oportunidade de apresentar defesa. “Por que aconteceu? Porque eu sou mulher, porque eu sou jovem e porque, principalmente nesse contexto, sou brasileira.”, questiona.